quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

VELEJANDO PELA VIDA

“Estou tão ocupado e chateado com a vida que velejar vai ser um saco”. Escutei essa frase de um amigo e não sei o que deu em mim que não respondi, mas a verdade é que não acho a vida tão chata ao ponto de não se querer velejar.
Hoje me peguei pensando em todos os lugares por onde já naveguei, durante essa minha breve vida marinha, a bordo desse Avoante cheio de manhas e manias. Acho que não tenho como fazer comparações, apesar de uma explícita paixão pela bela, mágica, cativante e cheia de encantos Baia de Camamú/BA. Mas a verdade é que nem mesmo essa ligeira queda de asas, poderia ser comparada. Cada praia tem sua beleza e para não perder o encanto eu nunca faço comparações.
O mundo visto de um veleiro é muito diferente de tudo que se possa comparar. Existe uma leveza que vem junto com o sopro dos ventos nas velas, que ainda não consegui identificar de onde ela parte. Tudo fica tão diferente que a vida e vivida sem a mínima preocupação com o segundo seguinte. As pessoas no mar se transformam. É uma transformação absoluta, onde cada pedacinho do corpo procura se doar melhor. Não tem idade, não tem raça, não tem cor, não tem nível social, não tem credo, não tem laços e o melhor de tudo é que não tem rumo. No mar não temos rumo. Fazemos nosso caminho e seguimos os nossos instintos.
Hoje me olhei no espelho e em vez de meu rosto, vi o mundo que se abriu em mim depois que me tornei intimo com o mar. Um mundo de coisas boas, um mundo de aventura, um mundo de sonhos, um mundo de conceitos jogados ao mar, um mundo de padrões abandonados, um mundo de amigos, um mundo de cores naturais e um mundo vivo de natureza e seus poderes indestrutíveis.
Não tenho nada, nem motivos para comparar todos os portos dessa velejada em busca de um mundo real sem a cegueira da hipocrisia e a desfaçatez dos deslumbramentos da sociedade.
Descobri que existe um Brasil escondido das lentes e pranchetas oficiais. Descobri um Brasil que chora, ri, canta, dança e se alegra com o mais simples afago de carinho e atenção. Um Brasil feito de mar e tão próximo do sertão. Um Brasil oculto sob frondosas árvores e exposto ao bom. Que mundo será esse que me meti? Um mundo onde posso ver a pureza e ao mesmo tempo a impureza das coisas. Um mundo onde posso ser realmente livre para decidir meu destino sem fugir da obediência das leis, da cultura e da razão.
Que mundo será esse em que navego, sob o vento e sobre ondas, sem perder a razão do desatino? Mundo que coloca todos no mesmo patamar. O rico e o pobre sobre as mesmas ordens. O branco e o preto sem o signo impiedoso de contos e cotas. O belo e o feio lado a lado sem a pecha dos padrões. Mundo onde os reis nem sempre estão no comando. Onde o poder se apaga e não existe poderoso.
Velejo com a alma livre, leve e solta para poder observar as crianças da Ilha de Tatuoca, que não sei se ainda estão por lá. Velejo com a mente aberta para apreciar a simplicidade de uma cidade ribeirinha, com nome esquisito, mas cercado de exuberante beleza, a sergipana Terra Caída e seus muitos rios navegáveis. Velejo com o sabor de deliciosas sapecas assadas no fogo de chão, ouvindo as estripulias do boêmio pescador Zé de Teca e sua canoa Toma Burro. Velejo sem preconceitos para poder sentar na lama de mangues e coroas em busca de chumbinhos, mariscos e taiobas. Velejo em busca de uma vida que sempre sonhei, mas que não sabia que realmente existisse. Velejo por um mundo solidário e livre de preconceitos, mas não aquele que vemos apenas nas propagandas oficiais e seus enormes banquetes.
Velejando dessa maneira, como eu poderia achar a vida chata? Talvez meu amigo ocupado e chateado com o mundo não goste mesmo de velejar. Talvez ele não se olhe no espelho, para ver um homem amarrado a valores que ele não sabe a serventia. Talvez ele não saiba que tem um novo mundo logo após horizonte. Talvez ele nem mesmo veleje, apenas fique olhando para seu barco e se imaginando um grande comandante. Mas, a vida é assim! Uns velejam e outros se perdem entre as amarras do porto.
Dedico esse texto a todos aqueles que um dia sonharam com uma vida melhor e sem amarras. Dedico esse texto a todos aqueles que nadam contra a correnteza da razão. Dedico esse texto a todos aqueles que fecham as janelas da vida quando sopram as primeiras lufadas de um vento mais forte.
E por fim, dedico esse texto a Lucia, minha fonte de inspiração, minha comandante e meu amor. Que um dia me presenteou com um pequeno barquinho que foi a lâmina que cortou todas nossas amarras.

Nelson Mattos Filho
Velejador

2 comentários: